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segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Jogo dos Sete Erros - 1964 - 2016



Por Rogério Dultra


castello temer
Foto atual: Ueslei Marcelino/Reuters
Por José Carlos Moreira da Silva Filho
STF
Golpe de 1964
Na madrugada do dia 2 de abril, o Presidente do STF, Álvaro Ribeiro Moutinho da Costa, normalizou o golpe ao dizer que a tomada do poder pelos militares e a derrubada do Presidente João Goulart, eleito pelo voto popular, estavam de acordo com a Constituição, além de ter comparecido à posse de Ranieri Mazzili, então Presidente da Câmara que passou a ocupar provisoriamente a Presidência da República. A afirmação e a atitude desse juiz não resistiram ao exame mais básico sobre o que dizia a Constituição de 1946. Jango estava em solo nacional quando o Congresso declarou vaga a Presidência da República, logo o cargo não havia sido abandonado como afirmaram. Após Castello Branco assumir a presidência, Moutinho da Costa afirmou que se fazia necessária em momentos de crise a relativização das garantias e dos princípios democráticos.
Golpe de 2016
Na noite do dia 20 de abril, no Jornal Nacional, o Ministro decano do STF, Celso de Mello, secundado pelos Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, afirmou que o processo de “impeachment” da Presidente da República Dilma Roussef, eleita pelo voto popular, estava perfeitamente de acordo com a Constituição. A afirmação desses Ministros é contrariada pelo que diz a Constituição de 1988, que prevê a possibilidade da deposição do Presidente da República pela via do impedimento apenas se ele houver praticado crime de responsabilidade. Dilma não praticou crime de responsabilidade. O atraso no repasse aos bancos públicos de recursos do Tesouro Nacional (“pedaladas”) não configura conduta criminosa, nem crime orçamentário, nem crime à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal e muito menos crime de responsabilidade. Em entrevista dada ao Estadão após a aprovação do processo de impedimento de Dilma Roussef pela Câmara dos Deputados, o ex-Ministro do STF Carlos Ayres Britto afirmou que em meio à crise política o país vive um momento de “pausa democrática” para que o país possa se reorganizar, uma espécie de “freio de arrumação” afirmou o ex-Ministro.
CONGRESSO NACIONAL
Golpe de 1964
No dia 2 de abril de 1964 o Presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzilli declara vaga a presidência da República mesmo o Presidente João Goulart estando em território nacional e mesmo não tendo Jango renunciado à Presidência. No dia 11 de abril, o Marechal Castello Branco é eleito Presidente da República pela via do voto indireto praticado pelo Congresso Nacional, obtendo 361 votos favoráveis, com 72 abstenções, 37 ausências e 5 votos contrários. Tais fatos revelam que o golpe civil-militar também revestiu-se do caráter de um golpe parlamentar, na medida em que o Congresso Nacional violou flagrantemente a Constituição de 1946 ao chancelar a deposição de um Presidente eleito pelo voto popular, sem a ocorrência de nenhuma das causas previstas no texto constitucional para sua deposição e, em seguida, promoveu eleições indiretas para Presidente da República sem que houvesse qualquer previsão constitucional neste sentido.
Golpe de 2016
No dia 2 de dezembro de 2015 o Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha aceitou pedido de impedimento contra a Presidente Dilma Rousseff. Contudo, o pedido não apresentou a existência da prática de crime de responsabilidade por parte da Presidente, única causa prevista na Constituição de 1988 como justificativa para o seu impedimento. O pedido foi aceito como vingança, pois ocorreu momentos depois que os deputados do PT declararam que votariam contra o Presidente da Câmara na Comissão de Ética da casa legislativa. No dia 17 de abril de 2016 ocorre sessão plenária de votação do parecer favorável, aprovado pela Comissão Especial constituída, ao impedimento da Presidente. O pedido é aprovado pela Câmara com 367 votos a favor, 137 contra, 7 abstenções e 2 ausências. Nas manifestações dos parlamentares para justificar o voto pouco se tratou da acusação da prática de crime de responsabilidade pela Presidente. O que a esmagadora maioria dos deputados disseram foram homenagens a membros da família, acusações de corrupção à Presidente (não mencionadas no pedido cuja aceitação se votava) e até homenagens a notórios torturadores da ditadura civil-militar, espetáculo que chocou a sociedade, até mesmo aqueles favoráveis à deposição da Presidente. A aprovação do pedido na Câmara representou o momento culminante para o afastamento da Presidente pelo Senado Federal, tornando-o praticamente irreversível sob o ponto de vista político. O golpe ainda em curso, portanto, tem um caráter inegavelmente parlamentar.
MÍDIA
Golpe de 1964
Ao longo do ano de 1964, antes que o golpe de Estado fosse dado, Roberto Marinho conspirava com políticos, empresários e militares golpistas e seu Jornal O Globo, assim como quase todos os outros jornais da grande mídia (e entre eles a Folha de São Paulo e o Estadão, além de revistas como O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand), estampava sucessivas manchetes que incitavam ao golpe. O Editorial do dia 2 de abril de 1964 festejou o golpe de Estado sob o argumento de que se salvava a democracia e se tratava de movimento apartidário, com apelos para que o Congresso votasse com rapidez as medidas necessárias, como a eleição indireta para Presidente e que tudo transcorria de acordo com a Constituição e com a legalidade. Roberto Marinho continuou conspirando com os líderes do golpe para que o mandato de Castello Branco fosse prorrogado e as eleições de 1965 canceladas. Em editorial do dia 31 de agosto de 2013, o Jornal O Globo reconhece que foi um erro ter apoiado o golpe de 1964, ainda que no mesmo texto procure justificar o seu erro.
Golpe de 2016
 Ao longo do ano de 2016, antes que o golpe de Estado fosse dado, João Roberto Marinho conspirava com políticos, empresários, procuradores e juízes golpistas e seu Jornal O Globo estampava sucessivas manchetes e editoriais de apoio ao golpe parlamentar, assim como fizeram também quase todos os jornais da grande mídia (e entre eles a Folha de São Paulo, o Estadão e a Revista Veja) . A Rede Globo de Televisão teve papel decisivo e protagonista por meio principalmente dos seus programas de notícias e jornalismo. O Jornal Nacional dedicou edições inteiras para noticiar e analisar vazamentos seletivos e escutas ilegais enviadas diretamente pelo juiz Sergio Moro, responsável pela Operação Lava-Jato. Também deu destaque para investigações ainda em andamento do Ministério Público Federal voltadas contra o Ex-Presidente Lula, seu partido e o governo da Presidente Dilma, ao mesmo passo em que dava pouco espaço e importância às denúncias e delações envolvendo empresários que apoiavam a oposição e políticos da oposição, entre eles o candidato do PSDB derrotado em 2014, Aécio Neves. Construiu-se um trabalho em equipe entre MPF, Judiciário Federal e a mídia golpista (em especial a Rede Globo, mas também com participação adesiva da Rede Bandeirantes, da Record e, em menor medida, do SBT). O auge do espetáculo midiático ocorreu na noite de 16 de março quando Moro envia grampos ilegais feitos na própria Presidência da República diretamente à Rede Globo de Televisão, contendo conversas particulares e privadas que são expostas à execração pública em pleno Jornal Nacional, que passa a estimular a população de Brasília a invadir o Palácio do Planalto. O crime praticado por Moro é ignorado pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo STF, contentando-se este último com um simples pedido de desculpas. A Rede Globo não admite que seja um golpe a deposição da Presidente em 2016 e não reconhece que sua cobertura é tendenciosa e parcial. Serão precisos mais 49 anos para reconheça o seu erro?
FORÇAS DE SEGURANÇA
Golpe de 1964
O alto oficialato das Forças Armadas, alguns nomeados diretamente pelo Presidente João Goulart, conspiram contra o próprio governo do qual fazem parte. A facção militar antigetulista assume a hegemonia e praticamente anula o chamado “dispositivo militar” com o qual Jango poderia contar, e que se revela inoperante e incapaz de conter a traição interna ao governo eleito no seio das Forças Armadas. Os tanques são colocados nas ruas e o golpe parlamentar obtém a segurança das armas para prosseguir.
Golpe de 2016
Amplos setores da Polícia Federal, em trabalho conjunto com o Judiciário e o Ministério Público Federal, levam adiante Operações de investigação, prisões e de execução de mandados de busca e apreensão que se voltam prioritariamente contra o próprio governo da Presidente eleita e seu Partido, assumindo  explicitamente um viés seletivo apoiado basicamente em delações de corrupção obtidas a partir de provisões provisórias sem prazo para acabarem, além de praticarem inúmeras ações ilegais e irregulares como vazamentos para a imprensa, prisões baseadas em indícios frágeis e escutas ilegais. O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, então comandante da Polícia Federal, revela-se incapaz de coibir tais abusos e ilegalidades e esconde-se atrás de um discurso pretensamente republicano, indo no mesmo sentido o STF, que convalida todos os atos da Operação Lava Jato.  Os policias e delegados responsáveis por essas Operações abrangidas pela Lava-Jato anunciam em redes sociais sua filiação política à oposição derrotada nas urnas. As caminhonetes da Polícia Federal e seus agentes são colocados nas ruas e o golpe parlamentar obtém a segurança do Estado policialesco e autoritário para prosseguir.
MOVIMENTOS DE CLASSE MÉDIA
Golpe de 1964
Setores da classe média brasileira, estimulados pela Igreja, empresários e meios de comunicação, vão às ruas pedir a deposição do Presidente eleito. Tais mobilizações ficaram conhecidas pelo nome de “Marchas com Deus, pela Família e pela Propriedade” e receberam farto financiamento de empresários brasileiros, em especial da FIESP, de empresários estadunidenses e do próprio governo dos Estados Unidos, através do IPES e do IBAD, institutos de fachada que serviam como canal de financiamento para parlamentares,  para propagandas e filmetes exibidos na televisão e nos cinemas, para centenas de programas de rádio e para as marchas de classe média, todos contrários ao governo João Goulart. O perfil das pessoas que compunham essas marchas eram de pessoas brancas, com educação formal completa e de nível de renda médio a alto. As principais bandeiras empunhadas por esses manifestantes, além da saída de João Goulart,  eram o combate à corrupção, ao comunismo e o apelo à intervenção das Forças Armadas.
Golpe de 2016
Setores da classe média brasileira, estimulados por empresários e meios de comunicação, vão às ruas pedir a deposição da Presidente eleita. Tais mobilizações procuraram explicitamente reeditar as “Marchas com Deus, pela Família e pela Propriedade” e receberam farto financiamento de empresários brasileiros, em especial da FIESP, e de milionários estadunidenses como os irmãos Koch, financiadores da organização “students for liberty” e empresários que atuam na exploração de óleo, gás e refino do petróleo. Tal financiamento se deu especialmente através de organizações como o Movimento Brasil Livre e o Vem Pra Rua. O perfil das pessoas que compunham essas marchas era de pessoas brancas, com educação formal completa e de nível de renda médio a alto. As principais bandeiras empunhadas por esses manifestantes, além da saída de Dilma Rousseff,  era o combate à corrupção, ao comunismo e o apelo à intervenção das Forças Armadas.
PARTICIPAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS
Golpe de 1964
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os EUA manteve estreito contato com as Forças Armadas brasileiras provendo treinamento militar e formação com base na Doutrina de Segurança Nacional, buscando igualmente transmitir técnicas de tortura e interrogatório e estratégias de guerra interna para combater o comunismo. Os EUA atuou também financiando ações golpistas internas, via IPES e IBAD, já que o governo João Goulart  empreendia medidas que batiam de frente com os interesses estadunidenses, como limitação de remessa de lucros das empresas estrangeiras situadas no país, legislação protecionista ao trabalhador e à atividade sindical, alinhamento comercial com a China, e ampliação do monopólio da Petrobrás. Os EUA enviaram tropas e navios à costa brasileira para apoiar o golpe de Estado caso o Presidente João Goulart decidisse reagir com as forças que lhe eram fiéis. E por fim, os EUA foram o primeiro país a reconhecer o governo usurpador instalado após o golpe de Estado.
Golpe de 2016
Desde pelo menos 2009, os EUA manteve estreito contato com setores do judiciário e do ministério público federal do Brasil, incluindo o juiz Sergio Moro e procuradores da força tarefa da Operação Lava Jato, provendo treinamento e formação em torno do combate à corrupção e de medidas de “contra-terrorismo”, buscando transmitir técnicas de negociação de delações, interrogatórios e outras práticas que relativizam os direitos e garantias fundamentais dos investigados, no melhor estilo “law & order”. Por meio de convênios de cooperação internacional entre o MPF e o governo dos EUA, documentos relacionados à Operação Lava Jato são compartilhados. Os EUA também atuaram financiando grupos dissidentes ao governo Dilma Rousseff, já que este  empreendia medidas que batiam de frente com os interesses estadunidenses, como a manutenção da exclusividade ou preferência da Petrobrás para explorar o pré-sal, e o alinhamento comercial e político a países como China e Rússia, com os quais criou uma alternativa de financiamento e hegemonia internacional, juntamente com a Índia e a África do Sul, conhecida como os BRICS.  Os EUA também realizou, por meio do programa NSA denunciado por Edward Snowden, ampla espionagem de emails e comunicações envolvendo todo o governo brasileiro e em particular a Presidência da República.
GOVERNO DEPOSTO   
Golpe de 1964
O governo do Presidente João Goulart possuía um amplo programa de reformas sociais para diminuir a desigualdade no país. Batizado de “Reformas de Base” o programa visava realizar a Reforma Agrária, limitar a remessa de lucros de empresas estrangeiras no Brasil, ampliar o monopólio da Petrobrás, garantir o direito de voto aos analfabetos e aos militares de baixa patente, legalizar o Partido Comunista, implementar programas nacionais de alfabetização com formação para a cidadania, facilitar o crédito para a aquisição da casa própria, valorizar o magistério e o ensino público em todos os níveis, promover a reforma fiscal para a carga tributária ser distribuída de forma mais justa, proporcional e igualitária, ampliar o acesso ao crédito aos pequenos e médios produtores, e nacionalizar os serviços de energia elétrica, refino do petróleo e químico-farmacêutico. O pretexto para o golpe foi a ofensa à hierarquia militar quando Jango apoiou pleito de militares da Marinha de baixa patente por direitos básicos como o de poder se casar sem necessitar de autorização do superior hierárquico. Tal pretexto não estava previsto na Constituição de 1946 como causa legítima de deposição do Presidente eleito.
Golpe de 2016
O governo da Presidente Dilma Rousseff deu continuidade a um extenso programa de políticas públicas populares que vinham dos governos Lula e também do seu primeiro mandato, e que eram relativas a programas de distribuição de renda mínima, ações afirmativas de cotas para negros e indígenas nas Universidades, crédito para estudantes de baixa renda poderem cursar o ensino superior privado, valorização do magistério e ampliação de vagas no ensino superior, aumento de quantidades e valores de bolsas de estudos,  ampliação de escolas técnicas, programas de facilitação do crédito para camadas de baixa renda adquirirem a casa própria, acesso ao crédito para pequenos e médios produtores, ampliação do número de médicos em localidades carentes, valorização de inúmeras pautas vinculadas aos direitos humanos, garantia da exclusividade ou preferência da Petrobrás na exploração do pré-sal, combate a propostas de terceirização do trabalho e ampliação dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos. O pretexto para o golpe foi a prática das já referidas “pedaladas fiscais”. Tal pretexto não está previsto na Constituição de 1988 como causa legítima de deposição da Presidente eleita.
Neste jogo, os erros são poucos e as semelhanças são muitas, e revelam que o Brasil não soube fazer a sua transição democrática, tendo apenas adormecido e adiado problemas e conflitos mal resolvidos que retornaram no golpe de 2016 no mesmo mês de abril e 52 anos depois do golpe de 1964. 
 PS: O apoio da Ordem dos Advogados do Brasil aos golpes de 1964 e 2016, embora seja outra grande semelhança com pouquíssimos erros, não será incluído neste jogo, pois é uma maneira de refletir o desprezo e a insignificância com que a iniciativa da OAB foi tratada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, um dos mais destacados artífices do golpe de 2016.  
Agradeço à minha mulher Maria Tereza Flores Pereira, Doutora em Administração de Empresas pela UFRGS e Professora Adjunta da Escola de Administração da UFRGS, pela inestimável ajuda na organização das ideias e na revisão do texto.